4 de dez. de 2016

A Liberdade que não temos



Temos que experienciar a história com agentes ativos, conhecê-la profundamente, descobrir as nossas raízes e sermos capazes de abstrair do seu conteúdo as nossas formações etnográficas, politicas e legislativas, pois somos o eco das escolhas históricas que a nossa sociedade fez durante toda a sua evolução. Sem entender a nossa historicidade estaremos fadados ao fracasso. E vem o questionamento, o quanto somos realmente livres?
 Hoje, no Brasil e no mundo, vivemos uma crescente da xenofobia e do encarceramento em massa, criminalizando tudo aquilo que nos é diferente, elegendo como crime/criminoso ou se não crime propriamente dito, mas como inadequado, e como tal medidas de afastamento são prontamente tomadas.  O fato é que, quanto mais nos afastamos, menos conhecemos o objeto do afastamento, e assim o temor torna-se imperante do “lado de cá do muro”.
No século XVI o motivo de medo tinha cor definida, e não era o branco caucasiano que gerava o receio. Era a “cor de jambo” do índio, que eram taxados de selvagens pelo sim estrangeiro que a principio atuou em duas frentes distintas, a primeira baseada na catequese e a segunda mais cruel baseada nas expedições de punições. E assim deu-se a primeira fase de ausência de liberdade, quer seja a liberdade da crença originária e por fim da liberdade e da vida, quando não sujeitos a submissão do conquistador europeu.
Ainda segundo os nossos livros de historia os primeiros escravos, aqui chegaram ainda em 1538, pelas mãos do arrendatário de pau brasil, Jorge Bixorda, e a ideia político-social de que os brancos eram superiores e o seu inverso verdadeiro, o negro era sub-raça e, portanto, seria elevada a categoria de propriedade destes primeiros, que eram em sua totalidade a minoria. Desta feitas, as concepções político-sociais da época, diziam que a supremacia caucasiana justificavam as medidas de afastamento e a classificação excludente dos eles e nós.
Em pouco mais de um século quase 2.000.000 de negros foram sequestrados de seus lares e traficados para os nossos portos, enquanto que a população indígena era dizimada aos milhares. Em meados do século XIX, por pressões externas, foi necessário repensar o modelo econômico, dai surge a Lei do Ventre Livre ou Lei do Rio Branco - LEI Nº 2.040 de 28.09.1871, que concedeu a liberdade àqueles nascidos dai então, mas qual o seu efeito prático? Nenhum, pois a criança nascia livre, contudo seus pais ainda eram escravos, e como escravos essas crianças viviam, pois, a completa ausência da autonomia da vontade e o julgo do Senhor de escravos estava por sobre seus pais. E a própria norma assim positivou: “Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos.”, ser escravo até a maior idade ou ser jogado a sarjeta e, a posteriori, se tornar o vadio das ruas.   A concepção brasileira era de atender as pressões da comunidade internacional, e não “ficar de fora” das concepções iluministas que pairavam sobre a sociedade ocidental na época e que internamente não poderia dar a total liberdade aos escravos, uma vez que todo o modelo econômico vigente, literalmente, pesava por sobre o ombro dos escravos.
Em 1888, a Lei 3.353 a não menos famosa “lei Aurea”, vem para, finalmente, dizer que todos são livres no Brasil, todos aqueles que se encontram sobre o julgo de outro homem será, desde então, liberto das suas amarras, e elevado à categoria de seres humanos. Contudo estes não poderiam ter a ascensão social e para tanto, em 1890, uma nova lei deu o permissivo que novos caucasianos europeus aqui migrassem e passem a ocupar os novos postos de trabalho na recém-indústria brasileira, mantendo o negro/pardo/mameluco em seus respectivos guetos, nas longínquas periferias dos centros urbanos. Esses novos libertos, “sem beira nem eira” restaram à nova subcategoria humana de favelado, não sabiam nem ler ou escrever e escravos da própria sorte ainda continuava.
Vagando pelos grandes centros, esses ex-escravos geraram um incômodo à nobreza, sendo criado, em plena República de 1893, o Decreto do Presidente Floriano Peixoto de nº 145/1893, primeiro, criando uma colônia penal e depois criando o tipo penal para aquele publico alvo, que eram os seguintes: “qualquer sexo e qualquer idade que, não estando sujeitos ao poder paterno ou sob a direcção de tutores ou curadores, sem meios de subsistência, por fortuna própria, ou profissão, arte, officio, occupação legal e honesta em que ganhem a vida, vagarem pela cidade na ociosidade.”, estes eram exatamente os indivíduos subjugados pela escravatura, agora de escravos a criminosos e voltariam ao trabalho nas fazendas ou fábricas, mas na condição de presos, escravos não do particular, mas do Estado-Juiz. Em 1903 existiu a necessidade de repensar quem eram essas pessoas e quais as formas que, tais colônias fossem rentáveis, para que elas pudessem se autossustentar, já nesse período encarceravam órfãos entre 9 e 14 anos, inculpados criminalmente, mas pela sua própria condição social.
Retrocedendo ainda aos idos de 1894, outros indivíduos foram taxados de subversivos como, por exemplo, a Guerra de Canudos, ou melhor, o Massacre de Canudos, que se deu por conta da miserabilidade existencial nordestina, que vieram a se reunir em torno do beato Antônio Conselheiro antirrepublicano convicto. Conduziu os seus, por mais de um ano, até que finalmente as tropas federais assassinaram a todos em 1897. Crianças, velhos e mulheres não foram poupados.
Na Guerra do Contestado, ocorrida entre as fronteiras do Paraná e Santa Catarina, por conta da construção de uma estrada de ferro, vários pequenos camponeses perderam as suas terras em detrimento os ganhos dos latifundiários, ao passo que os construtores ficavam ricos e os trabalhadores trazidos de várias regiões do Brasil, ao término, ficaram sem emprego e sem qualquer apoio estatal. E sob a liderança de José Maria, a população fragilizada passou a ter a consciência da precária condição e, desta feita, o Estado passou a divulgar que José Maria era inimigo da república, terminando com a prisão de Adeodato em 1916 e sua condenação a 30 anos de regime fechado.
Outras tentativas de reformas básicas, na mesma sorte, foram intentadas e dizimadas igualmente, como o Tenentismo, que tentou buscar reformas político-sociais estruturantes e combater a corrupção que já dominava o governo federal. E contra todos esses movimentos exceções foram suscitadas e aplicadas com a finalidade de cessar qualquer conscientização de liberdade ideológica que por ventura pudesse surgir.
Podemos concluir que sempre que alguém, por sua condição de raça, poder econômico ou casto social foi e é até a presente data, subtraída a sua condição humana e como res passa a ser tratada, sob o julgo agora do Estado. O ventre é livre e a escravatura física existe na sua forma transmutada em prisão ou em sublimação do Estado, em suas polítcas assistencialistas e a crescente penalização das condutas humanas, subvertendo questões de saúde pública em uma quimera de segurança pública totalitária, pela via do medo. 
Vivemos o medo Hobbesiano, o medo se consolida não como uma reação a um perigo ou ameaça específicos, mas a uma situação geral de insegurança. Teme-se não apenas a morte, mas também a violência, o desemprego, a dificuldade financeira, e até o próprio medo. Trata-se de um medo de “segundo grau”, ou “medo derivado”, que abrange parte considerável da população, de modo a propiciar um clima generalizado de insegurança. E temos o medo do mulato, do maltrapilho, do torcedor de futebol, do policial e do Estado. Quanto mais medo, menos liberdade termos, e essa é a liberdade que não temos.

Cezar Souza

Msc. Ciências Jurídicas/Advogado militante/Membro da CDH-OAB/PE