Temos que experienciar
a história com agentes ativos, conhecê-la profundamente, descobrir as nossas raízes
e sermos capazes de abstrair do seu conteúdo as nossas formações etnográficas, politicas
e legislativas, pois somos o eco das escolhas históricas que a nossa sociedade
fez durante toda a sua evolução. Sem entender a nossa historicidade estaremos
fadados ao fracasso. E vem o questionamento, o quanto somos realmente livres?
Hoje, no Brasil e no mundo, vivemos uma
crescente da xenofobia e do encarceramento em massa, criminalizando tudo aquilo
que nos é diferente, elegendo como crime/criminoso ou se não crime propriamente
dito, mas como inadequado, e como tal medidas de afastamento são prontamente tomadas. O fato é que, quanto mais nos afastamos,
menos conhecemos o objeto do afastamento, e assim o temor torna-se imperante do
“lado de cá do muro”.
No século XVI o motivo
de medo tinha cor definida, e não era o branco caucasiano que gerava o receio.
Era a “cor de jambo” do índio, que eram taxados de selvagens pelo sim estrangeiro
que a principio atuou em duas frentes distintas, a primeira baseada na
catequese e a segunda mais cruel baseada nas expedições de punições. E assim
deu-se a primeira fase de ausência de liberdade, quer seja a liberdade da
crença originária e por fim da liberdade e da vida, quando não sujeitos a
submissão do conquistador europeu.
Ainda segundo os nossos
livros de historia os primeiros escravos, aqui chegaram ainda em 1538, pelas mãos
do arrendatário de pau brasil, Jorge Bixorda, e a ideia político-social de que
os brancos eram superiores e o seu inverso verdadeiro, o negro era sub-raça e,
portanto, seria elevada a categoria de propriedade destes primeiros, que eram
em sua totalidade a minoria. Desta feitas, as concepções político-sociais da
época, diziam que a supremacia caucasiana justificavam as medidas de
afastamento e a classificação excludente dos eles e nós.
Em pouco mais de um século
quase 2.000.000 de negros foram sequestrados de seus lares e traficados para os
nossos portos, enquanto que a população indígena era dizimada aos milhares. Em
meados do século XIX, por pressões externas, foi necessário repensar o modelo econômico,
dai surge a Lei do Ventre Livre ou Lei do Rio Branco - LEI Nº 2.040 de
28.09.1871, que concedeu a liberdade àqueles nascidos dai então, mas qual o seu
efeito prático? Nenhum, pois a criança nascia livre, contudo seus pais ainda
eram escravos, e como escravos essas crianças viviam, pois, a completa ausência
da autonomia da vontade e o julgo do Senhor de escravos estava por sobre seus
pais. E a própria norma assim positivou: “Os ditos filhos menores ficarão em poder e
sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de
criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da
escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a
indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de
21 anos completos.”, ser escravo até a maior idade ou ser jogado a sarjeta
e, a posteriori, se tornar o vadio das ruas. A
concepção brasileira era de atender as pressões da comunidade internacional, e
não “ficar de fora” das concepções iluministas que pairavam sobre a sociedade
ocidental na época e que internamente não poderia dar a total liberdade aos
escravos, uma vez que todo o modelo econômico vigente, literalmente, pesava por
sobre o ombro dos escravos.
Em 1888, a Lei 3.353 a não
menos famosa “lei Aurea”, vem para, finalmente, dizer que todos são livres no
Brasil, todos aqueles que se encontram sobre o julgo de outro homem será, desde
então, liberto das suas amarras, e elevado à categoria de seres humanos.
Contudo estes não poderiam ter a ascensão social e para tanto, em 1890, uma
nova lei deu o permissivo que novos caucasianos europeus aqui migrassem e
passem a ocupar os novos postos de trabalho na recém-indústria brasileira,
mantendo o negro/pardo/mameluco em seus respectivos guetos, nas longínquas periferias
dos centros urbanos. Esses novos libertos, “sem beira nem eira” restaram à nova
subcategoria humana de favelado, não sabiam nem ler ou escrever e escravos da própria
sorte ainda continuava.
Vagando pelos grandes centros,
esses ex-escravos geraram um incômodo à nobreza, sendo criado, em plena República
de 1893, o Decreto do Presidente Floriano Peixoto de nº 145/1893, primeiro,
criando uma colônia penal e depois criando o tipo penal para aquele publico
alvo, que eram os seguintes: “qualquer sexo e qualquer idade que, não estando
sujeitos ao poder paterno ou sob a direcção de tutores ou curadores, sem meios
de subsistência, por fortuna própria, ou profissão, arte, officio, occupação
legal e honesta em que ganhem a vida, vagarem pela cidade na ociosidade.”,
estes eram exatamente os indivíduos subjugados pela escravatura, agora de
escravos a criminosos e voltariam ao trabalho nas fazendas ou fábricas, mas na
condição de presos, escravos não do particular, mas do Estado-Juiz. Em 1903
existiu a necessidade de repensar quem eram essas pessoas e quais as formas
que, tais colônias fossem rentáveis, para que elas pudessem se autossustentar,
já nesse período encarceravam órfãos entre 9 e 14 anos, inculpados
criminalmente, mas pela sua própria condição social.
Retrocedendo ainda aos
idos de 1894, outros indivíduos foram taxados de subversivos como, por exemplo,
a Guerra de Canudos, ou melhor, o Massacre de Canudos, que se deu por conta da miserabilidade
existencial nordestina, que vieram a se reunir em torno do beato Antônio
Conselheiro antirrepublicano convicto. Conduziu os seus, por mais de um ano,
até que finalmente as tropas federais assassinaram a todos em 1897. Crianças,
velhos e mulheres não foram poupados.
Na Guerra do Contestado,
ocorrida entre as fronteiras do Paraná e Santa Catarina, por conta da
construção de uma estrada de ferro, vários pequenos camponeses perderam as suas
terras em detrimento os ganhos dos latifundiários, ao passo que os construtores
ficavam ricos e os trabalhadores trazidos de várias regiões do Brasil, ao término,
ficaram sem emprego e sem qualquer apoio estatal. E sob a liderança de José
Maria, a população fragilizada passou a ter a consciência da precária condição
e, desta feita, o Estado passou a divulgar que José Maria era inimigo da república,
terminando com a prisão de Adeodato em 1916 e sua condenação a 30 anos de
regime fechado.
Outras tentativas de
reformas básicas, na mesma sorte, foram intentadas e dizimadas igualmente, como
o Tenentismo, que tentou buscar reformas político-sociais estruturantes e
combater a corrupção que já dominava o governo federal. E contra todos esses movimentos
exceções foram suscitadas e aplicadas com a finalidade de cessar qualquer
conscientização de liberdade ideológica que por ventura pudesse surgir.
Podemos concluir que
sempre que alguém, por sua condição de raça, poder econômico ou casto social
foi e é até a presente data, subtraída a sua condição humana e como res passa a ser tratada, sob o julgo
agora do Estado. O ventre é livre e a escravatura física existe na sua forma
transmutada em prisão ou em sublimação do Estado, em suas polítcas
assistencialistas e a crescente penalização das condutas humanas, subvertendo
questões de saúde pública em uma quimera de segurança pública totalitária, pela
via do medo.
Vivemos o medo
Hobbesiano, o medo se consolida não como uma reação a um perigo ou ameaça
específicos, mas a uma situação geral de insegurança. Teme-se não apenas a
morte, mas também a violência, o desemprego, a dificuldade financeira, e até o
próprio medo. Trata-se de um medo de “segundo grau”, ou “medo derivado”, que
abrange parte considerável da população, de modo a propiciar um clima
generalizado de insegurança. E temos o medo do mulato, do maltrapilho, do
torcedor de futebol, do policial e do Estado. Quanto mais medo, menos liberdade
termos, e essa é a liberdade que não temos.
Cezar Souza
Msc. Ciências
Jurídicas/Advogado militante/Membro da CDH-OAB/PE